O que tem de errado com o “sotaque” de Fernanda Torres?
O Diário - 24 de janeiro de 2025
Kleber Aparecido da Silva é Professor Associado 4 do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais e em Linguística na Universidade de Brasília. Foi Visiting Scholar em Stanford University, Penn State University e CUNY Graduate Center, em New York. É Bolsista em Produtividade em Pesquisa pelo CNPq
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O professor de inglês Felipe Coelho, postou um vídeo no dia 07 de janeiro de 2025, no qual pretende “avaliar” o discurso em inglês da brilhante atriz Fernanda Torres. Ora, pergunto-lhe primeiramente: em seu entendimento o que é “avaliar”?. Além disso, disse em seu post: “Gente, é sério! Por que ninguém está falando do inglês da Fernanda Torres? Geralmente as pessoas rasgam elogios para brasileiros que falam aparentemente sem sotaque ou com pouco sotaque, o que não é o caso da Fernanda. Ela tem um sotaque próprio que nem é americano nem britânico, ou a mistura dos dois com brasileiro, mas isso não compromete o cuidado com a pronúncia que ela tem”.
A partir deste excerto do vídeo me indago: é possível falarmos uma língua sem sotaque? Como? O que está envolvido em aprender e falar uma língua adicional e, neste caso, Inglês?. Ser competente em uma língua adicional, nessa perspectiva, significa saber agir, de modo pleno e crítico, em práticas sociais diversas em que a língua-alvo se faça presente. Grosso modo, ser competente em uma língua assim como Fernanda Torres é possuir proficiências múltiplas, para a (re)ação em diferentes contextos sociais. Em outras palavras, é apresentar letramentos múltiplos, críticos, multissemióticos que permitam o engajamento social e discursivo em diferentes âmbitos e esferas, sob perspectivas éticas e protagonistas. Ser um falante competente, assim, significa ser capaz de falar uma língua em múltiplas zonas de contato, apropriando-se dessa língua para seu próprio bem, com vistas a interagir com pessoas de outras culturas e com diferentes modos de pensar, agir e dizer, histórica e discursivamente marcados, tornando-se apto a enfrentar os novos desafios que o mundo, densamente (multi) semiotizado e repleto de adversidades e desigualdades, coloca a seu caminho, nos mais variados aspectos.
Com base em pesquisas que tenho realizado na Universidade de Brasília e no CNPq/CAPES desde 2009, defendo que o Inglês de Fernanda Torres revela, com intensidade e detalhes, a ressignificação da concepção que temos e que mantemos de “Inglês” neste momento sócio-histórico, concebido agora em uma perspectiva geopolítica e transcultural, com vistas à (trans)formação plurilíngue, crítica e decolonial. “Ainda bem que Fernanda Torres está aqui”, verbalizando, agindo e nos emocionando de forma plural e plurilíngue com questões que me são caras como perda, coragem e resiliência na sociedade brasileira, retratada de forma problematizadora e crítica, por meio da revisitação de um dos períodos mais difíceis da história do Brasil. Em minha opinião, Fernanda Torres reflete/refracta uma língua que reivindica, de forma protagonista e crítica, a luta constante por direitos humanos em nosso país. Pense nisto!