Antropofagizar a atropofagia
O Diário - 27 de maio de 2022

Priscila Ventura Trucullo é historiadora e professora de história da rede pública estadual
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O movimento antropofágico, inaugurado por Oswald de Andrade com a publicação do “Manifesto Antropofágico” em 1928 em revista homônima, é largamente conhecido como um marco do modernismo brasileiro, que este ano comemora seu centenário. Nada mais propício para o momento do que dar amplitude à renovação artística que resgata a estética e os conceitos lançados pelos vanguardistas, mas vai além: antropofagiza a antropofagia e problematiza seus silenciamentos, convidando o público a refletir sobre o processo histórico de nossa constituição cultural.
O tema veio através da nossa participação - minha e de meus alunos - na 14ª edição da Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB), promovida pela UNICAMP. Em uma das questões, uma obra de arte traz a cabeça de Mário de Andrade em fusão com Grande Otelo no centro de um cesto de palha, ornamentada com urucum, pimenta, mandioca e milho guarani. Ao lado da cabeça um exemplar do livro “Macunaíma” e um bilhete, onde lê-se: “Aqui jaz o simulacro Macunaíma, jazem juntos a ideia de povo brasileiro e a antropofagia temperada com bordeaux e pax mongólica. Que desta longa digestão renasça Makunaimî e a antropofagia originária que pertence a nós, indígenas”. A obra enigmática foi exibida em 2019 na exposição “ReAntropofagia”, um homônimo da tela, constituída exclusivamente por obras de artistas indígenas. Uma marca do formato da ONHB são as possibilidades de temáticas e os diversos ângulos de reflexão que as fontes proporcionam. Neste caso não é diferente, uma das possibilidades é analisar criticamente o aspecto colonial do nosso pensamento, presente nas artes, não apenas em relação ao indianismo romântico, mas também acerca dos limites da arte modernista. O artista Denilson Baniwa declara que “antropofagia agora é o devorar de tudo o que existe sem usar talheres franceses”, e ao fazer uso de referências e técnicas não indígenas questiona certa ideia mítica e congelada que se faz destes povos e nos convida a deglutir a cultura originária, cerrando fileiras pela retomada de seus territórios materiais e culturais.